por Jhoilson Fiúza
Já era noite, não sabia ao certo que horas, mas a lua estava
lá, imponente, no seu ponto mais alto. A
mesma lua que por séculos orientou navegações, inspirou poetas e encontros
apaixonados, agora levava o meu povo ao encontro do seu algoz. Ao olhar pela
janela do porão sujo e escuro, minha terra ficava cada vez mais distante, ao
ponto de sumir completamente dos meus olhos e a sua imagem da minha mente. Não
sabia para onde estávamos indo e muito menos o que nos esperavam ao longo do
Atlântico. Entre tantas incertezas, percebi que o nosso regresso era incerto.
Talvez nunca mais voltássemos!
Éramos algumas centenas, talvez milhares. O céu estava tão
repleto de estrelas quanto o navio de pessoas. Contar?! Era uma tarefa difícil,
pois eles não cabiam nos dedos das minhas mãos.
Fui insistente, mas também não cabiam nos dedos dos meus pés. Tentei
contar com os dedos da minha mãe, nada adiantou. “Quanta gente...”, pensei
comigo mesmo. Diferentes povos estavam ali, formando um verdadeiro caleidoscópio
cultural. Não eram apenas negros da África, eram negros de Kêtu e de Angola, eram
negros da cultura Nagô, Yorubá, JeJe e Bantos. Era um verdadeiro encontro entre
culturas, pena que não tínhamos motivos algum para festejar, como sempre
fazíamos.
Para falar a verdade, nem sabia por que estávamos ali.
Perguntei a minha mãe “Será que fizemos algo de errado?”. Ela apenas me olhou e
balançou a cabeça em sinal de negação. Não, não tínhamos feito nada de errado.
Éramos apenas negros e isso bastava!
Num vai e vem ritmado
do mar, a viagem parecia interminável. Muitos já não estavam entre nós. Não
éramos hospedes naquela embarcação, nem mesmo vistos como humanos. Éramos
apenas mercadorias, cargas a serem vendidas num lugar, que todos no convés
chamavam de Brasil. Que país era aquele que comprava homens, mulheres e
crianças? Que lugar era aquele que separava famílias, que roubava alegrias e
apagava sorrisos? Não sabia!
Em uma das muitas noites turbulentas e angustiantes, acordei
ofegante. Meu choro podia ser ouvido nos dois lados do Atlântico. O medo havia sufocado
meus sonhos, corrompido minhas memórias e aos poucos matava meu espírito. Podia
sentir meu coração pulsar com força, gritar por liberdade e transbordar de medos.
Minha mãe veio ao meu encontro e me acalentou em seus
braços. De repente, ela arrancou um pedaço de sua saia e amarrou as
extremidades. Em poucos minutos aquele pano sujo e velho deu forma a uma
boneca, a qual meu povo chamava de Abayomi, nosso bem precioso. Sem dizer
nenhuma palavra ela me entregou aquele pequeno objeto. Meus olhos estavam radiantes,
pois minha mãe foi capaz de oferecer o melhor, mesmo diante daquela situação
rumo ao cativeiro.
Meus medos de repente sumiram. Senti uma enorme força
envolver não apenas meu corpo magro, mas preencher meu espírito, que havia sido
violado pelo medo. Esse clima de carinho foi quebrado por um burburinho lá em
cima. O capitão gritou em alto e bom tom “Preparem-se para o desembarque!”
Depois de meses em alto mar, se aproximava o momento de
atracar. Sabia que aquele seria o início de muitos sofrimentos, mas poderia
suportar ao lado da minha mãe. Segurei firme em sua mão, também queria protegê-la.
Já estávamos próximo do convés quando a luz do sol tocou meu rosto. Por alguns
instantes me senti livre novamente. Mas os grilhões logo foram colocados para
sufocar esse sentimento. Antes mesmo de
pisar em terra firme e seguir para a casa grande, olhei para o céu e disse “que
nossos deuses nos ajudem...”.
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Jhoilson Fiúza é acadêmico de Licenciatura em História
pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB); bolsista do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES); e Professor de
redação pela Prefeitura Municipal de Muritiba, Bahia.
Parabéns Jhoilson. Lindíssimo texto! Leve, muito envolvente e conseguiu me transportar para as cenas narradas com tanta propriedade. Viva a parceria Memória - Patrimônio e Escrita Criativa!!!! Você é ÓTIMO....
ResponderExcluirFico muito feliz Eliane por ter conseguido envolver as pessoas com a minha história. Obrigado pela contribuição que o Dedinho de Prosa tem dado, juntamente com a Casa de Barro e a sua também, é claro!
ExcluirJhoilson, você é um exemplo de determinação! Seu texto ficou maravilhoso e suas memórias são incríveis! Parabéns pela sensibilidade e criatividade!
ResponderExcluirEu que agradeço Jamile! Muito obrigado.
ExcluirQue texto lindo... Me arrepiou dos pés a ponta do black power!
ResponderExcluirParabéns Jhoilson, parabéns equipe Casa de Barro.
Muito obrigado Lucas! Que bom que gostou! Essa do arrepio do black foi ótima rsrs.
ExcluirFico muito feliz, pois meu texto foi capaz de despertar tantas emoções boas.
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